quinta-feira, 18 de abril de 2019

Declaração do Parlamento das Religiões do Mundo

história de um dos documentos mais importantes do final do século XX,
contada por um de seus principais criadores.

O Conselho para um Parlamento das Religiões do Mundo em Chicago delegou-me a função de desenvolver um esboço de uma Declaração das Religiões para uma Ética Global. Essa foi para mim uma tarefa extremamente difícil. Em todo caso, depois de ter que lidar com os problemas semelhantes durante um semestre inteiro (1992), num colóquio interdisciplinar com
participantes de várias religiões e continentes tive condições de produzir um esboço inicial e enviá-lo a vários colegas e amigos para correção.
Este primeiro rascunho recebeu ampla aprovação daqueles a quem foi enviado. Ao mesmo tempo, dezenas de sugestões para correções formais, bem como de conteúdo, foram dadas.
Levei-as em consideração o mais cuidadosamente possível, num segundo esboço; dessa maneira, o texto ganhou em precisão. Desejo estender meus sinceros agradecimentos àqueles que participaram deste importante projeto, seja no colóquio interdisciplinar ou em colaboração desde o início, por meio de correspondência.
Gostaria de indicar aqui, de modo breve, os princípios que me guiaram nessa tarefa.

1. Em primeiro lugar, esta deveria ser uma declaração das religiões, que poderia mais tarde  ser seguida por uma declaração geral (como, por exemplo, no âmbito da UNESCO).
2. Numa declaração para uma ética mundial, o foco não poderia incidir sobre o plano das  leis, direitos codificados e parágrafos recorríveis (como no caso dos direitos humanos, por exemplo), ou no plano político, de sugestão de soluções concretas (como na crise da dívida do Terceiro Mundo), mas apenas no nível ético: o âmbito dos valores agregativos, padrões irrevogáveis e atitudes interiores fundamentais. É claro que esses três níveis estão relacionados entre si.
3. Houve sugestões para tornar a declaração mais "religiosa". Contudo, novas dificuldades resultariam daí. Se, por exemplo, falássemos "em nome de Deus", a priori excluiríamos os Budistas. Além do mais, não há consenso sobre a definição do que é "religião". Em todo caso, referi-me claramente à dimensão da transcendência, sem forçar a anuência dos  não religiosos, que esta declaração deve incluir.
4. Por outro lado, houve sugestões para tornar a declaração menos "religiosa". Contudo, se as religiões, em essência, apenas repetissem os princípios da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas, tal declaração se tornaria supérflua; uma ética é mais do que um conjunto de direitos. É claro que nossa Declaração para uma Ética Global pode ser um apoio ético à Declaração dos Direitos Humanos da ONU. De fato, é totalmente
 desejável que a UNESCO ou a ONU, assim que possível, também apresentem uma Declaração para uma Ética Global.

5. A declaração deve ser capaz de produzir consenso. Portanto, devem-se evitar afirmações que a priori seriam rejeitadas por uma das grandes religiões e, conseqüentemente, questões morais controvertidas (como aborto ou eutanásia) tiveram de ser excluídas.
6. Esta deve ser uma declaração formulada em linguagem amplamente compreensível, o que evitará argumentos técnicos e jargões, e passível de tradução em diversos idiomas.
 Parece-me ser mais compreensível começar com definições negativas e, em seguida, mudar para afirmações positivas.
Esta declaração foi assinada pela maioria dos quase duzentos delegados das religiõesmundiais que participaram do Parlamento das Religiões do Mundo, ocorrido no centenário do
primeiro Parlamento Mundial das Religiões, em Chicago, em 1893. O Parlamento das Religiões
do Mundo de 1993 (com a participação de 6.500 pessoas) ocorreu entre 28 de agosto e 4 de setembro de 1993 em Chicago, e esta declaração foi solenemente proclamada em 4 de setembro de 1993.
Considerações explicativas - O mundo está experimentando uma crise fundamental: a crise na economia global, na ecologia global e na política global. A falta de grandes visões, o emaranhado dos problemas não resolvidos, a paralisação política, lideranças políticas medíocres com pouca visão interior e exterior e, em geral, muito pouco senso de bem comum
são vistos por toda parte. Há muitas respostas antigas para novos desafios.
Centenas de milhões de seres humanos em nosso planeta sofrem cada vez mais com o desemprego, pobreza, fome e a destruição de suas famílias. A esperança de uma paz duradoura entre as nações afasta-se de nós. Há tensões entre os sexos e as gerações.
Crianças morrem, matam e são mortas. Cada vez mais países são abalados pela corrupção na política e nos negócios. É cada vez mais difícil viver pacificamente em nossas cidades, devido aos conflitos sociais, raciais e éticos, o abuso de drogas, o crime organizado e até a anarquia. Mesmo vizinhos freqüentemente vivem com medo uns dos outros. Nosso planeta
continua a ser impiedosamente pilhado. Um colapso dos ecossistemas nos ameaça.
Repetidamente, vemos líderes e membros de religiões incitar a agressão, o fanatismo, o ódio e a xenofobia - e até inspirar e legitimar conflitos violentos e sangrentos. A religião é muitas vezes usada apenas para fins de poder político, incluindo a guerra. Estamos desgostosos.
Condenamos esses males e declaramos que eles não são inevitáveis. Já existe, nos ensinamentos religiosos do mundo, uma ética que pode conter a dor global. É evidente que essa ética não oferece solução direta para todos os imensos problemas mundiais. Mas proporciona fundamentos morais para uma melhor ordem individual e global - uma visão que pode afastar mulheres e homens do desespero, e a sociedade, do caos.
Somos pessoas comprometidas com os preceitos e práticas das religiões do mundo.
Confirmamos que já existe um consenso entre elas, que pode ser a base para uma ética global - um consenso fundamental mínimo a respeito de valores agregativos, padrões irrevogáveis e atitudes morais fundamentais.

1. Nenhuma ordem mundial melhorará sem uma ética global
Nós, mulheres e homens de várias religiões e regiões da terra nos dirigimos aqui a todas as pessoas, religiosas e não religiosas, pois compartilhamos as seguintes convicções:
que todos somos responsáveis por uma ordem mundial melhor;
que a luta pelos direitos humanos, liberdade, justiça, paz e preservação da terra é justa e necessária;
que nossas diferentes religiões e tradições culturais não devem impedir nosso envolvimento comum em oposição a todas as formas de desumanidade e o trabalho para uma maior humanização;
que os princípios expressos nesta declaração podem ser afirmados por todas as pessoas com convicções éticas, religiosamente fundamentadas ou não;
que nós, como mulheres e homens religiosos que baseamos nossas vidas numa realidade última, e que dela tiramos força espiritual e esperança por meio da fé, da oração ou meditação, em palavras ou silêncio temos, contudo, uma responsabilidade muito especial pelo bem-estar de toda a humanidade.
Depois de duas guerras mundiais, do colapso do fascismo, nazismo, comunismo e colonialismo, e do fim da guerra fria, a humanidade entrou numa nova fase de sua história.
Ela tem hoje suficientes recursos econômicos, culturais e espirituais para instaurar uma ordem mundial melhor. Mas novas tensões étnicas, nacionais, sociais e religiosas ameaçam a construção pacífica de um mundo assim. Nossa época experimentou um progresso tecnológico nunca antes ocorrido, e, no entanto ainda somos confrontados pelo fato de que a pobreza, a fome, a mortalidade infantil, o desemprego, a miséria e a destruição da natureza, em âmbito mundial, não diminuíram, mas aumentaram. Muitas pessoas estão
ameaçadas pela ruína econômica, desordem social, marginalização política e pelo colapso nacional.
Em tal situação crítica, a humanidade não precisa apenas de ações e programas políticos, mas também de uma visão de convívio pacífico entre as pessoas, grupos étnicos e éticos e religiões; precisa de esperanças, metas, ideais, referências. Mas estes escaparam das mãos das pessoas ao redor do mundo. Será que as religiões, contudo, apesar de suas freqüentes
falhas históricas, não têm a responsabilidade de demonstrar que tais esperanças, ideais e referências podem ser cultivados, defendidos e vividos? Isso é especialmente verdadeiro em relação ao Estado moderno: exatamente porque ele garante a liberdade de consciência e religião, e precisa de valores agregativos, convicções e normas que sejam válidos para todas as pessoas, não importando a sua origem social, cor da pele, idioma ou religião.
Estamos convencidos da unidade fundamental da família humana. Portanto, rememoramos a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948. Aquilo que ela formalmente proclamou em termos de direitos, gostaríamos de confirmar e aprofundar aqui, na perspectiva de uma ética: a integral realização da dignidade intrínseca da pessoa humana, da liberdade inalienável, da igualdade de todas as pessoas, e a necessária solidariedade de toda a humanidade.
Baseados em experiências de vida pessoal e na história opressiva de nosso planeta aprendemos:
que uma ordem mundial melhor não pode ser criada ou, efetivamente, respeitada apenas por meio de leis, prescrições e convenções;
que a realização da justiça em nossas sociedades depende do discernimento e da prontidão para agir justamente;
que ações em favor de direitos presumem uma consciência de dever, e que, portanto devemos nos dirigir tanto às mentes quanto aos corações das mulheres e homens; que direitos sem moralidade não podem durar muito, e que não haverá uma ordem mundial melhor sem uma ética global.

Não entendemos ética global como uma única religião acima de todas as demais, e certamente não como a dominação de uma religião sobre todas as outras. Por ética global entendemos um consenso fundamental sobre valores unificadores, patamares incondicionais e atitudes pessoais. Sem tal consenso ético básico, qualquer comunidade será cedo ou tarde ameaçada pelo caos ou ditadura.

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